28 agosto, 2006

“AGORA ESTOU CONTENTE”

UNIVERSIDADE FEDERAL DE RONDÔNIA – UFRO
MESTRADO EM CIÊNCIAS HUMANAS
TEORIA LITERÁRIA
Profª. Dra. Marisa Khalil
Discente: Moisés Peixoto













ARTIGO:

“AGORA ESTOU CONTENTE”
O dialogismo num canto religioso batista.















PORTO VELHO/ RO
JULHO DE 2002

“AGORA ESTOU CONTENTE”
O dialogismo num canto religioso batista.

Por
Moisés Peixoto
Resumo: O presente estudo tem como objetivo a análise do dialogismo presente no corpus de um hino religioso. O discurso é um espaço permeado por várias vozes e a linguagem das canções religiosas, como qualquer outro discurso, não escapa a esta assertiva. Sendo assim, pretendo, apontar algumas dessas diferentes vozes que constitui, que atravessam [vozes religiosas e não religiosas] a letra de um hino cantado pelos batistas, intitulado: “Agora estou contente” e verificar o quanto elas reforçam ou não o elo deste grupo com a compreensão que Max Weber faz da ética protestante.

Palavras chaves: dialogismo; discurso; vozes; protestantismo; catolicismo e polifonia.


INTRODUÇÃO: A LINGUAGEM E O DIALOGISMO

É sabido que a língua não é somente organizada e usada para lamentar, rejeitar, suplicar, advertir, persuadir, comandar, mas também para cantar, pois cantar é um ato de fala, é uma enunciação. Cantar é discursar, é por a linguagem para agir de uma determinada maneira, é um modo de vida social e como diz Garcez: “... é uma atividade humana cujas categorias observáveis se modificam no tempo e apresentam um funcionamento profundamente interdependente do tipo de contexto social em que ocorrem” (1998:46). O hino, a canção ou qualquer outra linguagem musical, como discurso, é um produto do trabalho coletivo e histórico. E como tal, não existe no vácuo, mas está imersa numa rede de valores discursivos de vários níveis. Todo o universo lingüístico onde as canções musicais e demais modalidade de canto fazem parte, constrói-se, existe e funciona num universo social, coletivo, e não pode ser abstraído dessa condição.
Ao cantar estamos fazendo uso de várias unidades sonoras, cujo sentido só pode ser estabelecido e entendido como um produto do uso, como o resultado mesmo da atividade significante: o significado de uma palavra é o seu uso na língua. As configurações interativas da linguagem se consolidam na noção de discurso como forma de organização particular que tem as produções lingüísticas em função do tipo de atividade humana na qual se integram. Neste sentido, apesar dos hinos serem um discurso construído, inicialmente, pelas comunidades religiosas que o cantam, eles também interagem com o contexto social onde estão inseridos. Os hinos religiosos são, enfim, cantados num contexto social gerador de convenções, valores, símbolos, regras, e seu sentido são o resultado deste diálogo entre contextos. É a maneira de como eles são inseridos na trama das relações sociais, que confere à ação [de cantar hinos, entre outras ações também] características singulares e institui esta forma de ação. A linguagem seja ela religiosa ou não é uma ação interativa, pois segundo considera Bakhtin, “a verdadeira substância da língua não é constituída por um sistema abstrato de formas lingüísticas nem pela enunciação monológica isolada, nem pelo ato psicofisiológico de sua produção, mas pelo fenômeno social da interação verbal, realizada através da enunciação ou das enunciações. A interação verbal constitui assim a realidade fundamental da língua” (1997:123).
Vemos, enfim, o hino como uma enunciação; como um discurso, um texto religioso mediado por uma linguagem musical; linguagem esta que se fundamenta no entendimento de que são dialógicos E assim são “porque resultam do embate de muitas vozes sociais” (Barros, 1999:06) e também conforme justifica Lucila Garcez, “a enunciação tem uma orientação social, é orientada para o outro e é por ele determinada; porque sua compreensão depende de formulação ativa de resposta, de contrapalavras; é dialógico porque é essencialmente polifônico” (1998:56). O hino aqui em questão se intitula: “Agora estou contente” e faz parte da liturgia das Igrejas Batistas brasileiras.


1. O CORPUS DO HINO

A partir do pressuposto teórico de que a linguagem seja ela qual for, é uma forma de ação; que o dialogismo é o seu princípio constitutivo e a condição do sentido do discurso, apontaremos algumas das diferentes vozes que dialogam num hino batista e verificar se elas se aproximam ou se distanciam da ética protestante explicada por Max Weber.
O hino ou o canto religioso dentro dessa concepção tem sua melhor representação na letra da canção “The Shall My Heart Keep Singing”, escrita em quatro estrofes por J.J. Maxfield e publicada em 1888 na coletânea “New Hymns and Solos”, de Ira David Sankey (1840-1908); mais tarde, na coletânea “Secred Songs and Solos”; cuja música foi composta por Wiliam Augustine Ogden (1841-1897). A letra original foi traduzida por Stuart Edwin Mcnair (1867-1959). Este hino foi introduzido no hinário batista, denominado de “Cantor Cristão” na 36a. Edição, 1971 com o titulo “Cristo Satisfaz” (CC-395) e no “Hinário para o Culto Cristão” na 1a. Edição em 1990, intitulada: “Agora estou Contente” (HCC-319), omitindo a terceira estrofe da letra original de J.J.Maxfield. Eis o hino:

1-Riquezas não preciso ter, mas sim celeste bem; nem falsa paz, ou vão prazer, porquanto o salvo tem eterna paz no Salvador, por desfrutar o seu amor.

Estribilho:
Vivo feliz com Cristo, ele me satisfaz. Com esse amor do redentor, agora estou contente.

2- Do mundo as honras para mim perderam seu valor. Já tenho a paz divina, enfim, servindo ao meu senhor. E mais feliz, então serei ao ver a glória do meu Rei.

3- Até que esteja lá no céu, a onde Cristo entrou, e veja a face já sem véu de quem me resgatou, desejo só aqui viver de um modo que lhes dê prazer.


2. AS CONDIÇOES DE SUA PRODUÇÃO


É bom lembrar que a forma de enunciação do hino [sua estrutura] é determinada pelas condições de sua produção. É nos cultos das Igrejas que esta enunciação se produz inicialmente. Dependendo do culto que se faça e do contexto histórico-social que ele está inserido [o contexto brasileiro], este hino produzirá sentidos diferentes, apesar da letra, aparentemente, permanecer a mesma. Isto quer dizer que as chamadas “condições de produção” não são fixas e uniformes, mas dinâmicas. São nos cultos das Igrejas, onde os sentidos deste e de outros hinos são produzidos. Como no Brasil, o formato dos cultos não é de natureza simbólica e nem coletiva, mas pragmática e individualista, isto é, o culto tem como objetivo não o louvor e a adoração em si mesmo por parte da coletividade, mas sim, a conversão e reconsagração do indivíduo; são nessas condições, proporcionadas por tais cultos, que todos os hinos são cantados pela igreja. Eles são selecionados e executados com o propósito de reafirmar as suas “verdades” ou convicções oficiais, abraçadas por cada pessoa que dela fazem parte e de convencer os outros, de fora do grupo, a fazerem o mesmo, convertendo-se. Tal formatação litúrgica do culto dessas igrejas faz parte da tradição cultural construídas por elas ao longo do tempo, a partir da herança deixada pelos missionários que a instituíram em solo brasileiro. A respeito desta herança foi dito que: “em lugar do culto de louvor e adoração recebemos o culto de conversão-reconsagração, o culto-trabalho e o culto pedagógico” (Mendonça, 1990:182). Sendo assim então, o culto no Brasil, vem sendo um espaço forjado para que a experiência de conversão e reconsagração; trabalho e exercício da pedagogia possa acontecer. Tudo é voltado para esses propósitos, mesmo que nem sempre eles sejam atingidos. É bom lembrar que outras leituras podem ser feitas dos hinos que são cantados por uma igreja, não há como garantir que os objetivos do grupo sejam atingidos. Isto quer dizer que, não há como assegurar uma única interpretação dada para eles. Os hinos podem ser interpretados de muitas maneiras e isso devido ao seu caráter dialógico, polifônico.
Num culto batista nunca só há batistas participando, pessoas de outras denominações cristãs e de outras confissões religiosas [por exemplo: o Candomblé] podem se fazer presentes e ouvir ou cantar este e outros hinos. Qualquer hino cantado neste culto só envolverá a todos se alguma de sua voz constitutiva fizer parte também do repertório dessas pessoas presentes. Tais vozes podem está sendo reafirmada ou contestada dentro dela. Quando cantamos, ocorre um diálogo entre elas. Como são de variados matizes, há vozes, inclusive, que diferem da ética protestante descrita por Max Weber, por exemplo. Mas para que possamos verificar isso é importante termo de imediato, uma idéia resumida do pensamento Weberiano a respeito.

3. A ÉTICA PROTESTANTE SEGUNDO MAX WEBER


Na obra: “A Ética Protestante e o Espírito Do Capitalismo”, Max Weber investiga a emergência do capitalismo como sistema econômico e suas conseqüências na sociedade como um todo, concentrando seus estudos principalmente na Inglaterra. Weber, nesta sua obra, afirma que o objetivo da Reforma não era criar o espírito capitalista e que a mesma não foi à única responsável pela criação do capitalismo. Logo na introdução de seu livro, ele nos apresenta um conceito que será trabalhado no decorrer da sua obra, a racionalidade. É esta que define o espírito capitalista. Segundo ele mesmo diz: “... usamos provisoriamente a expressão do espírito do capitalismo (moderno) para designar a atitude que busca o lucro racional...” (2001:55) O capitalismo moderno é marcado por uma extrema racionalização e é um fenômeno peculiar à sociedade ocidental. Para entender tal questão é necessário levar em conta a ética particular dos primeiros empresários capitalistas e compreender que esta ética não estava presente nas outras civilizações. Para exemplificar esta ética peculiar, o autor faz referência às anotações de Benjamin Franklin, onde o aumento do capital aparece como ideal de um homem honesto e de crédito reconhecido. Weber afirma que a ética protestante foi um dos fatores de racionalização da vida que contribuiu para afirmar o que ele chama de “espírito do capitalismo”. Entretanto esta não foi à única causa na gestação do capitalismo, e sim um elemento que contribuiu para lhes dar forma. É a disciplina econômica e a maximização da eficiência técnica, enfim, o princípio da racionalização que distinguirá o capitalismo das formas tradicionais de gerir a economia e o tornará incompatível com a visão mágica ou sacra da Europa medieval. Após afirmar que: “O calvinismo foi à fé sob a qual se desenrolaram as grandes contendas políticas e culturais dos séculos XVI e XVII nos países mais desenvolvidos...” (2001:75), Weber foi procurar em certas correntes protestantes calvinistas a base das idéias que contribuíram para formar o espírito capitalista. Apesar de encontrar diferentes dogmas teológicos entre essas Igrejas, o autor observou que suas máximas teológicas eram semelhantes e que todas eram marcadas por uma conduta de vida baseada no ascetismo. O que lhes interessou foram às motivações psicológicas que tem sua origem nas crenças e práticas religiosas que criam um tipo ideal, sem pretender refletir com isso a realidade histórica. Desta forma, Weber busca racionalidade até na religião, querendo compreender como essas motivações agiram na realidade para formar o espírito capitalista. Assim, ao falar do calvinismo, Weber pensa na ética peculiar a certos meios calvinistas do fim do século XVII e não na própria ética de Calvino.
A ética encontrada por Weber nas religiões protestantes apresenta em sua base uma interpretação da predestinação que aceita os desígnios de Deus como irrevogáveis e impenetráveis, sendo tão impossível perder a graça, uma vez que ela foi concedida, quanto ganha-la se foi recusada. Outra característica é a rejeição do sagrado e do sacramento, visto que é em seu próprio espírito e não por intermédio de outrem que o protestante deve compreender a palavra de Deus e o sinal da sua eleição. Desta forma, toda a magia envolvida no conceito católico de conquista ou reconquista da salvação é eliminada e a religião passa por uma racionalização crescente. Porém a necessidade de saber se pertence ou não à categoria dos eleitos será uma constante na vida do protestante, que tentará identificar os sinais da salvação na conduta de sua vida pessoal, rigorosamente submetida aos mandamentos de Deus, e em seu êxito social, correspondente à vontade divina. Este êxito social compreende o sucesso na atividade profissional. Desta forma o sucesso é uma manifestação da glória de Deus e um sinal da salvação. O êxito no trabalho confirma a vocação pessoal e justifica a eleição, não se podendo comprar a própria salvação com boas obras ou sacramentos, o que diferencia o protestante do católico que, por sua vez, espera que a salvação surja da “mágica” do sacerdote ou de suas “boas obras”.
“Apesar, pois da inutilidade das boas ações como meios de se obter a salvação,..., eram, contudo indispensáveis como sinal de eleição” (2001: 86).
Outro sinal da eleição é o ascetismo que demonstrar que o crente é portador da verdadeira fé. O constante domínio de si e a conduta ascética contribuíram para racionalizar a gestão dos negócios, tornando o protestante apto a organizar as empresas e, conseqüentemente, racionalizando a economia. Porém, a acumulação de riqueza, proveniente do êxito profissional, poderia ser vista como uma contradição às leis divinas, o que não é verdade se observarmos que o condenável é a ociosidade e não aquisição de riquezas. O tempo não pode ser desperdiçado e deve ser dedicado ao máximo para o trabalho, já que “não é trabalho em si, mas um trabalho racional, uma vocação, que é pedida por Deus”. Além disso, o protestante deve usufruir somente daquilo que é absolutamente necessário para sua subsistência, evitando gastar com supérfluos e luxurias e combatendo o uso irracional da riqueza, o que fortalece a idéia de acumulação. Desta forma, originou-se um estilo de vida que alimentou diretamente o espírito do capitalismo, criando uma situação uma situação favorável ao seu desenvolvimento. Com a extrema valorização da riqueza e a idéia de que era necessário evitar o luxo, o lucro era reinvestido em trabalho, provocando assim uma incessante acumulação de capital. Weber afirma que esta organização racional dos negócios e esta conduta não são a causa única do capitalismo, mas sim um de seus elementos fundamentais. Por fim, a análise das relações existentes entre a ética protestante e o espírito do capitalismo é apenas um exemplo sugestivo que mostra como um código ético de origem religiosa determina um comportamento moral que transforma os aspectos econômicos.
4. AS VOZES ATRAVESSADORAS

Novamente segundo Bakhtin: “As palavras são tecidas a partir de uma multidão de fios ideológicos e servem de trama a todas as relações sociais em todos os domínios” (1997:41). Sendo assim, nenhum hino existe e nem é cantado no vazio. Como são produtos históricos-sociais, produtos eclesiásticos, não só tem finalidade religiosa, devocionais ou proselitista, mas também ideológica e política. São essas vozes que lhes atravessam.
Seria interessante realizarmos nossa análise a partir da letra original, mas não sendo possível, tivemos que nos deter na tradução mais recente dela em uso nas Igrejas que utilizam o Hinário para o Culto Cristão, uma vez que isto não afeta o dialogismo que pretendemos apontar. As vozes que buscamos identificar na letra deste hino, ainda continuam lhes atravessando. Não obstante, é bom lembrar que o hino em si mesmo não nos diz nada, não tem sentido e nem nenhum significado a qual possamos desvelar, descobrir. A sua interpretação é produzida quando ele é cantado, quando ele está em interação; fora disso, ele é somente apenas texto, somente discurso. Mas, que vozes podemos perceber na constituição desta canção? Que fios ideológicos tecem suas palavras? Ao observarmos a primeira estrofe:

1.“Riquezas eu não preciso ter mas sim celeste bem...” [1ªestrofe]

Muitos são as vozes que atravessam esse discurso do hino sobre a riqueza. Uma dela vem da sociologia e economia, que a define como, ter posses, ter bens e propriedades. Na linguagem tanto marxista como liberal riqueza implica em ser proprietário de algum meio de produção de bens que proporciona ao possuidor os benefícios da sociedade onde se encontra. O dinheiro, como os demais bens, é encarado como uma mercadoria e estão sujeitas as trocas, para que seja multiplicada. Ele deve ser gerador de mais dinheiro, mais riqueza. Não existe em si mesmo ou para si mesmo, mas é produto do trabalho humano.
A riqueza segundo a literatura bíblica é definida indiretamente de diferentes maneiras tanto no Velho quanto no Novo Testamento. Segundo Du Buit & Monloubou (1997:630-631): “No Antigo Testamento, a riqueza é contemplada em primeiro lugar como sinal de benção de Deus que recompensa a fidelidade do homem. A abundancia dos bens dos patriarcas e de Jó constitui um sinal dessa benção. A riqueza é um dom de Deus; é lícito deseja-la. Mas contra esse otimismo constante começam a se fazer ouvir vozes diversas. A dos Sábios, por exemplo, moderadas, mas às vezes sarcástica. Não se deve, segundo eles, dar demasiada importância à riqueza, porque ao morrer ninguém leva nada consigo. O rico não pode comprar um suplemento de vida. Além do mais, a riqueza traz muitas preocupações: Quem se farta de riquezas não logra conciliar o sono. A pessoa muito rica corre o perigo de afastar-se do senhor”. “No Novo Testamento, o dinheiro constitui um grande obstáculo para se entrar no Reino dos Céus; ele é personificado como se fosse uma divindade pagã ‘Mammon’”.
Há a voz [doutrina oficial] da igreja batista que dialoga também no hino, propondo uma única e válida interpretação, cuja inspiração advem de uma leitura particular da Bíblia, onde a riqueza é definida como ter posses e bens materiais também, mas que nada disso pertence ao homem, mas a Deus. O homem seria apenas o seu administrador. Segundo a declaração Doutrinária da Convenção Batista Brasileira (1987:18): “Todas as bênçãos temporais e espirituais procedem de Deus e por isso devem os homens a ele o que são e possuem e, também, o sustento,... o crente é mordomo ou administrador da vida, das aptidões, do tempo, dos bens, da influência, das oportunidades, da personalidade, dos recursos naturais e de tudo o que Deus lhe confia em seu infinito amor, providência e sabedoria”. Já os chamados princípios batistas (1987:21), reafirmam que “os bens materiais em si não são maus nem bons. O amor ao dinheiro, e não o dinheiro em si, é a raiz de todas as espécies de males”. Observem que tal visão se relaciona com a ideologia liberal. É uma relação histórica. Os batistas surgem, enquanto denominação religiosa na Europa pós Reforma Protestante no século XVI e no Brasil, no início do período Republicano, no final do século XIX, junto com o liberalismo econômico. Sua doutrina é forjada em meio a esse contexto social.
Portanto, cantar: “riquezas não preciso ter” para quem já a possui e que vive de sua acumulação, seja este batista, católico, espírita ou qualquer outra coisa, pode tanto significar uma crítica como uma sugestão, quando aponta para um outro objetivo que tais pessoas deveriam buscar atingir: “os bens celestiais”. Tais pessoas já possuem bens materiais, já estão satisfeitas com elas ou até fartas delas, agora precisam também acumular bens de uma outra natureza. O que seria, portanto, “bens celestiais” para um batista, por exemplo? Nenhuma resposta seria satisfatória, uma vez que até os bens materiais poderia fazer parte desta categoria para eles. Neste caso, vai predominar o sentido que a comunidade lhes der. Para os que não possuem e nem acumulam riquezas, tal canção pode servir de consolo ou desculpas. Posso não possuir nenhum patrimônio, não ter emprego, moradia, saúde, vestimentas e alimentos e ser feliz assim mesmo, porque, quando eu morrer, terei tudo isso lá no céu. Posso também, me contentar com o que já tenho, mesmo que seja nada, e me satisfazer com os bens simbólicos que Deus me dar. Sou pobre, mas Deus me dar saúde e inteligência! Isto é que é uma benção celestial! “O salvo tem eterna paz no Salvador” assim afirma o hino ainda na sua primeira estrofe. Por isso dispensa a riqueza. O importante é ser rico espiritualmente. Bem aventurados os pobres de espíritos, porque deles é o Reino de Deus, assim diz os evangelhos.
Tal compreensão acima é ideológica. Uma vez que muitos protestantes apesar de falarem desse jeito, tem uma conduta oposta. Esta idéia não condiz com o ideal de valorização da riqueza que alguns deles defendem. Se fosse para eles mesmos praticarem tal entendimento, esta canção jamais seria cantada, porque ser cristão não significa fazer voto de pobreza e desprezar a riqueza por crê que ela não traz paz e nem prazer verdadeiro. Ora, quem assim agia, segundo Max Weber era o católico pré Reforma protestante. Este, segundo ele: “vivia eticamente da mão para a boca” (2001: 87). Se satisfazer só com os bens celestiais, para muitos calvinistas por exemplo, é se satisfazer com pouco; é sinal de que esta pessoa não é um eleito, mais sim um parasita de Deus. Isso tudo, se levarmos em consideração em que contexto econômico nós estamos inseridos, levanta inúmeras questões políticas, a saber: Por que cantarmos esse ideal num tempo onde a idéia de trabalho está se diluindo e o desemprego é muito mais real?
A pobreza era adotada como regra de vida no século XI como contraponto ao luxo proporcionado pela riqueza. Segundo Macedo: “... do século XI em diante, as cidades aumentaram em número e em importância. Justamente nesse momento, em que a riqueza proporcionada pelas atividades urbanas ficava mais visível, a pobreza passou a ser encarada como um ideal” (1996:58). Seria a pobreza, um ideal de vida almejado por quem assim canta em nossas cidades de hoje?

2. “Do mundo as honras para mim perderam seu valor”.[2ªEstrofe]

Do mundo as honras para mim perderam seu valor. Já tenho a paz divina. Este é o início da segunda estrofe e qual voz estaria cruzando esta frase? É a voz do ascetismo. Segundo Weber uma voz legitimamente protestante. Segundo ela, não poso sentir prazer com os resultados do meu trabalho. Nenhuma honra, que seja ela política, econômica ou social. O crente tem que ser discreto, poupador. O resultado do trabalho deve ser investido no crescimento desse trabalho e não no consumo ou na gastança. O consumismo, segundo esta ética descrita por Weber, é irracional para o capitalismo. Não obstante, no mundo do século XXI em que o prazer da vida é consumir e que você é aquilo que consome, tal ética protestante soaria estranho, não tem seguidores fieis nem entre os próprios protestantes. Frases do tipo que diz: “desejo só aqui viver de um modo que lhes dê prazer” não reproduz o ideal ascético dos protestantes do século XIX descritos por Weber, uma vez que o conceito de prazer foi também estendido, sem culpa alguma, aos homens. Estes passaram a visto com outros olhos pelos credos evangélicos. O prazer pode ser sentido, apesar do limite imposto pela regra de conduta rigorosa. Essa é a contradição em que os evangélicos vivem no seu dia-a-dia. Por isso, o ascetismo dos evangélicos de hoje tem se restringido mais aos discursos. Na prática, o que se ver, é extremamente o oposto. Desde a metade do século XX, podemos observar, o quanto o protestantismo de todos os tipos tem abraçado inteiramente a lógica capitalista, no que diz respeito à criação de um mercado especificamente dirigido ao consumidor evangélico para que possam, com isso, criarem toda uma gama de produtos variados e com isso obterem cada vez mais lucros pessoais. Neste sentido, todos ou quaisquer argumentos religiosos, teológicos e comercias para justificar o empreendimento podem ser usados. O empreendimento é visto como uma cruzada evangelística; o mercado como um espaço onde se concorre com satanás e os seus produtos e o lucro como a vitória dos santos contra o príncipe das trevas. O lucro material é visto como uma benção de Deus que proporciona também bênçãos espirituais. Muitas pessoas têm sido evangelizadas e se tornado evangélicas por meio desses produtos disponíveis no mercado. Nele podemos encontrar todos os tipos de produto, desde Bíblia de vários tipos para variado gosto, como chaveiro com mensagens religiosas, CDs, camisas, bonés, celulares e etc. Tal comportamento deixou de ser visto como “coisas do mundo” e as “coisas do mundo” passaram a ser algo diferente.
Enfim, há ainda uma ética protestante que subjaz o comportamento dos evangélicos de hoje, porém esvaziado do antigo ascetismo por eles vivido. O protestantismo deixou de ser puritano para se tornar utilitarista, logo, algumas das vozes que atravessam um hino como este acima supracitado, dificilmente, faria referência ao ideal ascético do passado. Os diferentes entendimentos aqui construídos são apenas alguns dos inúmeros que podem ser construídos.






BIBLIOGRAFIA

1. BAKHTIN, M. (1929). MARXISMO E FILOSOFIA DA LINGUAGEM. Hucitec, São Paulo, 1997.

2. BARROS, Diana Luz Pessoa de. DIALOGISMO, POLIFONIA E ENUNCIAÇÃO. In Dialogismo, Polifonia, Intertextualidade. 01/09, Editora da Universidade de São Paulo. São Paulo, 1999.

3. DU BUIT, F.M & MONLOUBOU, L. DICIONÁRIO BÍBLICO UNIVERSAL. Editora Santuário e Vozes. Petrópolis, 1997.

4. GARCEZ, Lucília. A ESCRITA E O OUTRO. Editora Universidade de Brasília, Brasília, 1998.

5. HINÁRIO PARA O CULTO CRISTÃO, JUERP, Rio de Janeiro, 1992.

6. MACEDO, José Rivair. RELIGIOSIDADE E MESSIANISMO NA IDADE MÉDIA. Moderna, São Paulo, 1996.

7. MENDONÇA, Antônio G. CRISE DO CULTO PROTESTANTE NO BRASIL: DIAGNÓSTICO E ALTERNATIVAS. In Introdução ao Protestantismo no Brasil. 171/204, Edições Loyola, São Paulo, 1990.

8. WEBER, Max. A ÉTICA PROTESTANTE E O ESPÍRITO DO CAPITALISMO. Martin Claret, São Paulo, 2001.

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