28 agosto, 2006

Um projeto a ser criticado....

UNIVERSIDADE FEDERAL DE RONDÔNIA








Os Desviados De Deus


História Oral de Vida com Ex-Evangélicos



MOISÉS PEIXOTO







Anteprojeto de pesquisa como pré-requisito para seleção de mestrado em Ciências Humanas da Universidade Federal de Rondônia – UFRO orientado pelo Prof. Dr. Alberto Lins Caldas
APRESENTAÇÃO

DA CONVERSÃO AO DESVIO

“Do nosso meio é que saíram, mas não eram nossos,
conosco teriam permanecido.”(1 João: 2,19)”.

Os adeptos das Igrejas evangélicas brasileiras nem sempre foram conhecidos como “evangélicos”. Eles foram chamados de várias outras maneiras, ao longo da história, a saber: Bíblia, crente, acatólicos, seita, bode, protestante, histórico, missionário, povo avivado, pentecostal, neo ou pós-pentecostal, missa-seca, pentecostal autônomo renovado, escolhido de deus, evangélico progressista e etc... Tais adjetivos não serviram apenas para impingir uma identificação acadêmica e popular, serviram também, como uma forma de descriminação pejorativa por parte dos seus opositores. O fato é que não existe acordo, entre quem classifica, entre quem é nomeado e entre uns e outros. Todavia se os critérios de classificação são muitos e ensejam uma disputa nominativa interminável, podemos nos apegar à história, onde, ao menos nos últimos anos, dada a visibilidade que esse segmento religioso ganhou na opinião pública, se forjou um consenso referendando o termo “evangélico” como categoria abrangente. Mais que um puro modismo, “evangélico” é um termo atualmente muito usado para denominar todo um conjunto de seguidores de uma religiosidade, cuja origem remonta à Reforma Protestante do século XVI. Segundo a professora da UERJ, com doutorado em antropologia pelo Museu Nacional/UFRJ, Clara Mafra: “... houve todo um processo histórico que permitiu que o termo se tornasse um identificador abrangente das igrejas filiadas à tradição inaugurada pela Reforma de 1529, no Brasil” (2001:08).

Dos protestantes que aqui chegaram até os atuais “evangélicos” há toda uma trajetória histórica. No Brasil, até 1810, o catolicismo romano era a única religião oficialmente reconhecida. Só a partir da chegada da família real portuguesa e de uma comitiva de ingleses anglicanos ao país, da assinatura do Tratado de Comércio e Navegação entre Portugal e Inglaterra, da aberturas dos portos e da expectativa de uma certa circulação de estrangeiros não católicos, é que houve a possibilidade real do protestantismo se estabelecer em solo brasileiro de forma restrita. Foram criadas regulamentações legais para que esses estrangeiros realizassem seus cultos. De acordo com elas, O salão de culto não deveria ter aparência exterior de igreja (como a católica) e a pregação deveria se restringir aos membros do grupo religioso, isto é, era proibido o proselitismo religioso. Os imigrantes alemães, por exemplo, chegaram em 1824 a Nova Friburgo (RJ) e São Leopoldo (RS) e se adaptaram bem a tais regras, pois o luteranismo estava interessado apenas ao seu investimento colonizador, apoiando os imigrantes recém chegados.
O protestantismo que veio a seguir, final do século XIX e início do século seguinte, apesar das restrições, foi proselitista. Sua principal característica foi o expansionismo. Era o protestantismo de origem missionária ou, segundo a classificação dada por Antônio G. Mendonça e Prócoro V. Filho: “protestantismo de missão” (1990:25). Na virada do século XIX, a expansão colonial do mundo anglo-saxão elevou o movimento missionário à escalada mundial. Missionários norte-americanos de inúmeras tendências teológicas (batistas, metodistas, presbiterianos e etc...) começaram a chegar ao Brasil aos poucos. De um modo geral, a teologia por eles trazida era de evangelização, ou melhor, de uma vertente fortemente conversionista que consistia num processo diferente de mudança cultural: era a conversão que implicava o rompimento abrupto do indivíduo com seu meio cultural através da adoção de novos padrões de conduta opostos àqueles em que havia sido criado. No caso do Brasil, os padrões de conduta católicos. Em suma, a sua propaganda religiosa (“evangelismo”) estava ligada a uma idéia de conversão individual baseada na consciência de culpa, seguida de ato voluntário de aceitação da oferta de salvação, sucedido pela justificação e pela santificação progressiva. A fé era determinada pela experiência pessoal e emotiva.
No início do século XX, dentro de um contexto de maior liberdade religiosa obtida pela implantação do regime republicano no Brasil, o protestantismo aqui instalado se diversificou muito mais com a chegada de novas denominações e organizações para-eclesiástica (Uma espécie de ONG evangélica), como também, se segmentou em muitas outras variedades de igrejas, tais como, por exemplo: a Assembléia de Deus em 1910, fruto de um racha da Primeira Igreja Batista de Belém do Pará. As novas vertentes do protestantismo surgidas, a partir da explosão pentecostal no Brasil, irão transformar radicalmente o modelo de protestantismo vindo dos EUA que aqui chegou antes.
Quase um século e meio depois, do protestantismo de missão ter chegado, a religiosidade protestante, de um modo geral, sofreu transformações tanto na sua forma como no seu conteúdo. Proliferam-se igrejas cristãs não-católicas que preferirão agora serem conhecidas, pela forma abrangente, de “evangélicas”. Entre elas, podemos destacar, como exemplos, as igrejas pentecostais nacionais e neopentecostais. Os evangélicos brasileiros não apenas copiam a religiosidade alheia, estrangeira, eles agora também exportam seu próprio modelo religioso. A idéia de salvação, da forma de intervenção no mundo do Outro, os motivos que animam os seus missionários, estrangeiros e brasileiros hoje diferem das concepções iniciais. Resumidamente: “houve no contexto brasileiro uma releitura singular da mensagem cristã por pessoas que continuam se identificando como evangélicas”.(MAFRA, 2001:11) Um exemplo dessa mudança que diferencia uma igreja evangélica de outra do passado é a sua lógica conversionista. A idéia de conversão agora se aproxima mais da idéia de martírio enfrentada pelos santos que da convicção calvinista da eleição divina e da sensação instantânea de bem-estar pelo encontro da verdade das demais correntes protestantes históricas. No meio evangélico ampliam-se as possibilidades para que, segundo MAFRA:

“Os conversos vivam a nova adesão como um processo. Não é mais tanto o pastor ou o corpo de fies -a congregação- que ensina e guia de perto as opções abertas para o novo converso; ele mesmo vai adequando sua nova postura até, como dizem no meio pentecostalizado, se ‘sentir bem’” (2001: 45).

Apesar das variações neste campo religioso, nada de substancial ocorreu, nenhuma ruptura “revolucionária” se fez sentir nas suas concepções doutrinárias e na sua forma de agir. Tanto as igrejas protestantes históricas como as “moderninhas” igrejas evangélicas, conservam uma característica essencial comum na sua estrutura de funcionamento e na sua doutrina: o autoritarismo e a ortodoxia. Isto é, ser evangélico ou protestante significa fazer parte de uma comunidade que pretende ser a única conhecedora da verdade “revelada”. Visto que, a conversão evangélica só acontece e se afirma, empiricamente, com sucesso, quando mediada pela ecclesia. Só por seu intermédio, ela assume uma feição, religiosamente, concreta e intensa para muita gente que a experimenta. Sem uma comunidade não existiria tal discurso. Para Peter L. Berger: “somente dentro da comunidade religiosa, a ecclesia, a conversão pode ser efetivamente mantida como plausível” (1985: 209). Uma vez, fazendo parte do grupo, o convertido tem que se submeter às normas preestabelecidas pela comunidade ou pela autoridade religiosa. Ao membro da comunidade cabe apenas a obrigação de cumprir o que é determinado como correto e afastar-se dos interditos.
Ser bom cristão é adequar-se à disciplina da comunidade. No caso de insubordinação, a pena pode variar da simples advertência privada ou pública até a exclusão da comunidade. Quando alguém é penalizado ou abandona a comunidade voluntariamente, há sempre um esforço para trazê-lo de volta, a não ser que ele ingresse em outra denominação evangélica ou se “desconverte”.
Um exemplo de “desconversão” no Brasil é o do sociólogo Gilberto Freire que, tendo se convertido na infância ao protestantismo num colégio evangélico, o Americano Batista, e ter se batizado na Primeira Igreja Batista do Recife em setembro de 1917, abandona posteriormente o protestantismo após presenciar uma cena de racismo contra um negro por parte dos seus irmãos na fé, numa Universidade Batista nos Estados Unidos. Segundo George Guilherme:

“Durante uma refeição na universidade, um tumulto do lado de fora chamou a atenção do estudante. Não é nada, estão apenas queimando um negro, disse seu tutor. Ao sair do refeitório, Gilberto Freyre conferiu a cena de perto. Um grupo de rapazes brancos- todos batistas- atacou um jovem negro e ateou fogo ao seu corpo. Tal fato provocou fim do relacionamento dele com o protestantismo que havia abraçado: ele se afastou” (2000: 36 a 39).

Um outro exemplo, agora, de “desconversão” sucessiva. É o caso da Maria de Lourdes dos Santos de 50 anos:

“Já freqüentou a Igreja Batista durante seis anos a fio, mudou para umbanda e, mais tarde, para o candomblé. Dona de uma loja de produtos religiosos em São Paulo passa o dia entre ervas, guias e imagens de orixás. Mas sempre se declarou católica e toda segunda-feira vai à igreja acender uma vela ‘para as almas atormentadas’- o que não a impede de continuar fazendo seus ‘trabalhinhos no terreiro’uma vez por semana”. (GARÇONI, Inês e VILAS, Juliana S/D).

De acordo com Antônio Gouvêa Mendonça e Prócoro Velasques Filho:

“Uma vez ocorrido o processo de conversão, com mudança de convicções religiosas, padrões comportamentais e valores culturais, uma segunda mudança, renegando a anterior, ocorre sem maiores traumas. A volta ao mundo é mais fácil que a saída dele. Para a comunidade da qual ele saiu, a desconversão indica a superficialidade de sua regeneração e santificação. Quem sai é tido sempre como fraco e culpado. Esse processo de desconversão pode ser súbito ou gradual, através de mudança de interesses ou redescoberta de valores morais e culturais abandonados, principalmente o reencontro com o princípio do prazer anteriormente abandonado em troca da vida ascética protestante. Pode, ainda, ocorrer um questionamento progressivo das doutrinas e costumes comportamentais da comunidade”.(1990:231)

A comunidade tenta de várias maneiras impedir que tal processo prossiga. Desde a cooptação até a absorção de certas críticas, tudo é utilizado, tudo é tentado por ela. Todavia, se nada disso funcionar, a comunidade pune de diversas formas, inclusive com a exclusão. É a partir daí que os excluídos da comunidade passam a ser chamados de desviado.

Mas, a despeito de tudo isso, tanto o conceito de conversão como o de desconversão religiosa, na prática, sempre representou um mito (no sentido de feitos lendários), uma “ficção evangélica” em nossa sociedade, ao tentar fazer crer que é possível alguém passar por uma experiência de ruptura profunda, abissal, drástica e traumatizante, aponto de se tornar uma outra pessoa totalmente diferente das que nós conhecemos e convivemos socialmente. Será que o convertido e o desviado existem realmente? Existem para quem? Ao propor o tema: “os desviado de deus” não estou propondo fazer uma pesquisa deles, como se existissem, mas sobre eles; sobre “alguém” construído por uma comunidade religiosa determinada. Seria isto possível? O que isso poderia significar? O que acontece então, quando há um processo de desconversão? Será mesmo que este processo ocorre sem maiores traumas? Quem rompe é fraco e culpado como crê os evangélicos? Seria uma ruptura de uma outra ruptura? Enfim, a conversão é ruptura mesmo? Os desviados de deus, são mesmo desviados?

Partido das problemáticas acima apresentadas, trabalho com a hipótese que, o que acontece com as pessoas que afirmam terem se convertido, é apenas uma mudança de discurso sobre o projeto de vida que elas escolheram para si mesmas. Mudança que, dentro da sociedade capitalista, não significa de fato uma ruptura com ela, pelo o contrário, significa uma acomodação as suas estruturas, uma variação do mesmo ou mudança para não mudar nada.
Os ex-evangélicos não são os “objetos” de estudo desse meu projeto, mas os sujeitos escolhidos para ele; sujeitos com quem dialogarei. Este projeto visa então, discutir com os protagonistas do processo de “desconversão” a importância e os significados deste processo e se ele foi necessário? Se foi a sua única alternativa de reação a estrutura eclesiástica da qual se ligou por meio da conversão? Se tal processo tem alguma relação com aspecto do nosso presente, tido como “pós-moderno?” e também, se eles se sentem como um “desviado”?
Preocupado com essa constatação, pretendo dialogar com as partes envolvidas com este processo de desvio e, através dos relatos de vida perceber como a instituição religiosa e seus mitos interferem nas relações dos indivíduos com a cultura preexistente antes do contato com a mensagem evangélica e depois como esta mensagem provoca o afastamento dessas pessoas sem que ela, de fato, rompa definitivamente com ela.












JUSTIFICATIVAS


Em primeiro lugar, o que justifica este trabalho é o vínculo do seu tema com a minha própria vida. Eu mesmo já fui um “protestante” ou “evangélico”. Passei pela experiência chamada, pelos evangélicos, de conversão ou de “novo nascimento” e me tornei membro de uma igreja batista após ser batizado nela e, por fim, passei uma temporada da minha vida sendo um metodista. Experimentei também, gradualmente, um processo inverso, que chamo de processo de “desconversão”. Rompi com tudo o que diz respeito a este grupo e hoje vivo uma experiência diferente da que vivi antes. Mas tal fato deixou em mim um desejo de compreender esta experiência profunda, complexa e significativa. Este desejo é antigo e agora, por meio da pesquisa, pode se concretizar. É este desejo que justifica, antes de tudo, a construção deste projeto de pesquisa. Este, como qualquer outro, também tem um componente individual e subjetivo que dá a exata dimensão do grau de comprometimento e de viabilidade do mesmo. Ao ir ao encontro do “outro”, estarei indo também a busca de mim mesmo. Conforme nos diz Mercedes Vilanova: “Propusemos as histórias de vida, que na realidade são sempre uma biografia dupla, porque queremos saber quem são e como são, mas, sobretudo, falando com eles, queremos saber quem somos nós” (1994: 54) e também José Bittencourt Filho: “aqueles que enveredam pelas ciências sociais buscam em última análise explicar suas próprias vivências” (1996:226).
Outra justificativa para este trabalho é o fato de haver pouquíssimos trabalhos conhecidos nesta área, pelo o menos em nossa universidade. Não estou me referindo a trabalhos sobre fenômenos religiosos, que há inúmeros, mas pesquisas sobre os efeitos dessas opções religiosas na vida das pessoas.

“Sabe-se que as ciências do social e as ciências da religião têm produzido análises exaustivas tanto acerca do sentido quanto das características dos fenômenos religiosos, contudo, têm relegado a um papel secundário o que eles significam no nível das vivências e experiências práticas das pessoas” (FILHO, 1996:225).

Enfim, não conheço nenhum trabalho, cujo alvo, seja esta forma peculiar de exclusão que, para mim, não é apenas religiosa, mas também social. E como a exclusão, apesar das suas variadas manifestações, é vista, na maioria das vezes de uma forma geral e única (a visão dos economistas) em nossa sociedade, este projeto tem a intenção de buscar outras redes de significados para a ela, nas experiências de vida de quem a experimenta de perto. Para mim, os evangélicos realçam a exclusão social, dão um sabor próprio ao fenômeno, quando trata a sociedade como “desviada de deus”. Tanto a conversão aos valores de uma comunidade religiosa específica , como a desconversão deles, não é algo que diga respeito somente a esta comunidade, mas a toda sociedade da qual ela faz parte e ajuda a construir, por que não dialogar com quem passou por essa experiência?
Não estou pretendendo com isso fazer história, capturar um conhecimento ou uma nova verdade que ainda não foi estabelecida, até porque muitas pessoas já fazem isso (teólogos, sociólogos, historiadores e etc...), e nem uma outra análise institucional para o fenômeno. Busco sim, em termos gerais, estabelecer um diálogo com parte substancial do presente, através da conversa-diálogo, ou melhor, do diálogo-entrevista e do processo de transcriação como um todo. “Nossa grande busca é pelo sentido do outro, pelo seu significado social, por sua integralidade vital, pelo significado do seu fluxo vital de interioridade, não somente por pretensas palavras fiéis”.(CALDAS, 1998:40) Em suma, busco através da comunicabilidade da experiência desses ex-evangélicos que acontece durante a entrevista-diálogo, uma outra maneira de criar o conhecimento e de compreender as realidades que podem vir deles. Experiências que não podem ser transformadas em objeto de estudo a qual pode ser bulida, mexida ou dissecada, mas tratada como matéria viva para uma compreensão, negação ou uma interpretação radical. E isto só é possível, reafirmo, quando estas experiências forem relatadas por meio de entrevistas. A entrevista é entendida aqui como um processo dialógico e não como mero registro documental. A História Oral que pretendo fazer não considera a entrevista como mais uma “fonte histórica”, mas diálogo vivo. Um diálogo, onde o entrevistado é o centro do diálogo e não o entrevistador, cuja característica da relação entre ambos, supera a, medíocre relação, “mercadológica”, sujeito-objeto da ciência. Esta entrevista transcende sua relação EU-ISTO. É mais uma troca de vivência mútua, um EU-TÚ mais lúcido e profundo envolvendo entrevistado e entrevistador, onde “... ambos os partícipes do jogo da entrevista interagem, se modificam, se revelam, crescem no conhecimento do mundo e deles próprios” (MEDINA, 1990:6). Este diálogo,

“... não é entre pessoas, mas entre tempos, imaginários, idéias, corpos, experiências, vozes, imagens, choques normalmente, diferentes, onde o presente se desdobra, faisca, flui, se recusa, desaparece, se organiza, cria e destrói, apresenta-se e grita. E deve ser nessa, com essa e para essa diferença que deve acontecer o diálogo” (CALDAS, 1999a:100).

A religiosidade, e tudo mais que está por traz das experiências desses “desviados”, constitui também para mim em um pré-texto do qual partirei. Contudo imagino que no decorrer das entrevistas e do processo daí decorrente ocorrerá um deslocamento, da religiosidade ao próprio presente: esta passa a ser tratada, não mais como algo dado, fixo, pré-estabelecido, mais sim, como um fluxo formatado e formatador onde fluidas formas de relacionamentos, mutações, contradições, nostalgia, e imaginários se fazem atuar.
Fazer História Oral com tais pessoas é importante e se justifica também, não apenas por fazer um simples “resgate do oprimido” ou uma “história dos excluídos”, mas sim, porque fazemos também, uma busca de nós mesmos e de uma sociedade, em particular, que cria inúmeras formas de exclusão, entre elas, as religiosas. Forma de exclusão que considero a pior de todas, porque mexe com a subjetividade, com o simbólico e o imaginário das pessoas, com aquilo que é também chamado de “interioridade” ou de “alma”. O desviado não é só um produto da religiosidade vivida, mas é também, da sociedade onde ela se criou e continua sendo criada. Através das falas dessas pessoas poderemos perceber que, muitas delas até, são excluídas duas vezes, simultaneamente: uma pela sociedade e outra pela igreja. Poderemos perceber também a influência do discurso oficial religioso, que se baseia numa história que também não passa de um discurso do poder que fundamenta outros discursos do poder, servindo de modelo a partir da qual ele se torna a sua narrativa assimilável.
Não busco “ex-evangélicos”, nem “desviados”, porque jamais os encontraria. Busco sim, experiências de pessoas que assim se reconhecem ou é reconhecida, por tais rótulos, pela comunidade que abandonou. Ao dialogarmos com elas, esta condição poderá vir a existir ou não; o inexistente, então poderá se tornar existente. Vale lembrar que, o fato de alguém romper com a comunidade religiosa onde se converteu, não significa necessariamente que este alguém rompeu com o que acredita. Por isso, fazer história oral com tais pessoas, é também, possibilitar o debate em torno da discriminação e dos diversos estereótipos dela gerados. É também buscar uma inovação dos temas até agora pesquisado no campo da História Oral, tais como, “Comunidade ribeirinha”, “Calama”, “Comunidades indígenas”, “Comunidades de seringueiros” e etc.
A escolha do tema se justifica também pelo o fato de existir certa proximidade com os referidos protagonistas, facilitando as entrevistas que se constituirão em meu material de trabalho.
Por fim, penso ser de fundamental importância este projeto por acreditar que a interpretação da experiência dos “desviados de deus” tocará nos elementos que constitui a nossa identidade social, e como a religião que o gera é canal por onde tais elementos se expressam institucionalmente. Através dos discursos gerados pelos colaboradores, poderei tocar em certo presente.



OBJETIVOS


Num trabalho de pesquisa em história, os objetivos são, o de tomar conhecimento do passado, resgatar o acontecido e provar a verdade dos fatos, bem como estudá-los ou analisá-los. Toda as ações humanas precisam ser objetificadas para que o historiador possa realizar sua missão bem como estarem documentadas. Os documentos oficiais, atas e registros cartoriais são os materiais com que o historiador escreve a “história”. Neste sentido, ele não cria nada, apenas traz a tona algo que está escondido. Como a História Oral não é história, nem disciplina, nem ciência e principalmente memória, mas, segundo, José Carlos Sebe Bom Meihy: “um lócus multidisciplinar e federativo” (1996: 48). Ela não tem objeto de estudo, mas, “sujeitos em diálogo” (CALDAS, 1999a: 70), Então, com quais objetivos pretendo fazer esta História Oral sem que haja objetos a serem pesquisados?
Em termos gerais, o meu objetivo é fazer uma reflexão coerente sobre o presente, não aquele naturalizado, físico, fruto de uma mentalidade científica e relacionado ao tempo do capital, mas um presente compreendido como: “dimensão humana por excelência, onde/quando projetamos e entrelaçamos vivamente, bem além das naturalizações, a experiência singular, pessoal, grupal e comunitária” (CALDAS, 1999a: 57). Isto porque, é o presente que, com suas materializações, pode ser compreendido e falado, apreendido e interpretado. Será com as entrevistas que este presente da História Oral se materializará.
Não obstante, o que será refletido especificamente, sobre este presente consubstanciado pela História Oral? Ou melhor, quais são os meus objetivos específicos?

1.Entender a especificidade da vida dos que participaram ativamente de comunidades religiosas denominadas “evangélicas”, em toda as suas dimensões, além daquela puramente religiosa, suas singularidades, as relações criadoras dessa condição assumida ou não, conscientes ou não, por parte dessas pessoas, através das suas narrativas;

2.Compreender a estrutura real imaginária desses “desviados”. Estruturas estas, criadas pelo diálogo entrevista, que nos aproxima do que seria este conceito;


3. Buscar as metamorfoses que os levaram a serem considerados “desviados” pela comunidade religiosa, isto é, buscar as suas experiências consideradas “desviantes”, seus motivos e suas implicações, bem como, outras leituras, outras interpretações dessa experiência além das que são feitas e tidas como únicas;

4. Desconstruir os aparatos da linguagem instituída, a ordem discursiva, dos grupos evangélicos, subjacentes nas narrativas (os “não ditos”) dos colaboradores, que naturaliza seu rótulo e seu estigma de “desviado” e toda linguagem estranha que lhes deu existência, procurando ir além dessas limitações, dessas camadas de significados, nele “visíveis” até onde for possível ir;

5. Analisar o simbolismo que compõem os discursos dos respectivos colaboradores dessa minha pesquisa.




















METODOLOGIA



Para a construção da entrevista, pretendo trabalhar com alguns aspectos do método desenvolvido por José Carlos Sebe Bom Meihy (1991, 1998), e outros elementos da metodologia desenvolvida por Alberto Lins Caldas (1999a, 1999b, 2000, 2001). De Meihy pretendo trabalhar as etapas da entrevista, transcrição e textualização; de Caldas pretendo trabalhar com a Cápsula Narrativa e, principalmente, com as concepções de leitura/interpretação e texto desenvolvidas pelo Centro de Hermenêutica do Presente.
Será assegurada ao colaborador a liberdade para que ele se diga, isso implica em dizer que não pretendo trabalhar com entrevistas dirigidas, mas isso não implica em dizer que eventualmente não será formulada questões ao entrevistado, tendo sempre como eixo à própria narrativa dele.
Para viabilizar as entrevistas, pretendo utilizar os conceitos de rede e ponto zero, não da forma exata como o estabelecido por MEIHY (1998). Isso se deve ao fato de não encontrar com facilidade alguém que assuma publicamente tais rótulos, ou mesmo em virtude da inexistência de uma instituição que agregue os assim denominados “desviados”. Por isso terei que tomar como ponto zero um pastor ou um “fiel” / “evangélico” que me fornecerá dicas de pessoas “excluídas” pela comunidade ou que se “excluíram” dela. A partir desses indicativos darei início a construção da rede.
Ao falar de entrevistas, convém deixar claro que não o considero como mais um tipo de documento, fonte ou objeto, que deva servir para confirmar o que antes é afirmado com peso da teoria, para servir de meio de coleta de dados ou servir também de objetos de manipulação de certos historiadores. Considero sim a entrevista, como uma práxis cuja finalidade é desenvolver uma interpretação radical que só se realiza plenamente nas palavras de CALDAS, “como diálogo criativo que continuará em trabalho textual no qual toda a riqueza desse diálogo possa se encontrar além de uma pobre objetificação” (1999a: 100). Por isso, de jeito nenhum, as entrevista serão tratadas como um outro modo de se revelar uma verdade antes escondida, que os outros documentos não são capazes de fazer. Porque, não existe uma verdade a ser revelada e explicada por alguém, pelo historiador ou oralista. Uma verdade da qual tenhamos de investigar. Elas, as entrevistas, não entrarão no texto acadêmico na forma de alguns fragmentos objetificado da fala do outro, não serão também vistos como depoimentos coletados, onde quem é objetificado são os entrevistados, mas entrarão sim, como “Co-autores” do diálogo que pretendo instaurar no/com o meu trabalho. Ao agir assim não farei um projeto sobre “algo ou alguém”, mas um projeto com; e a entrevista, será, na verdade, “diálogo”.
E o que pretendo fazer com as entrevistas? “Usá-las” para dizer algumas coisas ou confirmar o que eu penso ou acredito a respeito do tema do meu trabalho? Não! Se os entrevistados, na verdade são os meus colaboradores e Co-autores do projeto que se constituirá ao longo desses caminhos que ele percorrerá, logo eles são os seus sujeitos também e como tal, dialogarão comigo e eu com eles. Nem a voz do colaborador e nem a minha deve ser anulada. É assim que entendo a leitura, como um diálogo, mas um diálogo onde a negatividade seja seu fio condutor, seu eixo central. É ela que faz o diálogo fluir. “O ato de ler é, antes de tudo, ação destrutiva” (CALDAS, 1997: 06).Enfim, o que pretendo fazer com as entrevistas é uma interlocução, é um diálogo movido pela negatividade.






















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