28 agosto, 2006

EVANGÉLICO, UMA IDENTIDADE EM CONSTRUÇÃO...

EVANGÉLICO, UMA IDENTIDADE EM CONSTRUÇÃO...



“... só o escrito me faz existir nomeando-me”.
Jacques Derrida

Moisés Peixoto*
Introdução

Fala-se bastante hoje em dia acerca dos evangélicos, eles são alvos de inúmeras reportagens de revistas semanais, jornais de grande ou de pequena circulação, são também notícia de telejornais e objeto de pesquisa acadêmica. Entre estas há do sociólogo Ricardo Mariano chega a dizer que: “o termo evangélico, na América Latina, recobre o campo religioso formado pelas denominações cristãs nascidas na e descendentes da Reforma Protestantes européias do século XVI. Designa tanto as igrejas protestantes históricas (Luterana, Presbiteriana, Congregacional, Anglicana, Metodista e Batista) como as pentecostais (Congregação Cristã no Brasil, Assembléia de Deus, Evangelho Quadrangular, Brasil para Cristo, Deus é Amor, Casa da Benção, Universal do Reino de Deus etc.)” (1999:10). O certo é que o vocábulo “evangélico” é hoje de domínio público. Não há quem não o tenha ouvido ou lido por aí. A proposta deste artigo é o de defender algumas idéias acerca dos evangélicos a partir do diálogo que travarei com alguns autores que versam sobre o mesmo tema; dialogando principalmente com o texto: “A força do Senhor” que foi publicada na revista Veja, edição 1758, ano 35- nº26 de 03 de julho de 2002 da editora Abril, da página 88 a 95.
1. Evangélicos, um fenômeno recente.

Evangélico é uma invenção recente, moderna, cuja relação com o mítico cristianismo do primeiro século, não passa de uma ficção oriunda dessa outra ficção. Quando um evangélico se reporta aos “primeiros cristãos” da história como estivessem falando de se mesmo, como se eles e aqueles fossem termos sinônimos, na prática, está apenas fazendo um discurso político e reproduzindo a ideologia do seu grupo religioso, que precisa de reconhecimento e penetração social. É de fundamental importância para ele e seus pares esta conformidade com um “passado”, que acreditam ser “real” e ter “acontecido de verdade”. Isso cria uma sensação de pertencimento a um lugar da unidade, cria uma identidade. A este respeito, podemos observar o exemplo de uma dessas igrejas evangélicas: a batista, que frente às demais, acredita ser a única que tem, de fato, sua origem em Jesus Cristo e na Igreja neotestamentária. Segundo a tese batista: “os discípulos de Jesus Cristo, que a partir dos Séculos XVII e XVIII passaram a ser conhecidos como Batistas, têm as mesmas doutrinas e práticas das igrejas cristãs do 1º século de nossa era” (Pereira, 1987:11). Como em qualquer comunidade, tribo ou sociedade, os evangélicos construíram uma existência de si para si mesmo. Todavia, é preciso compreender que só para eles, sua afinidade com Jesus Cristo e a Igreja Primitiva é indubitável. Por isso se enquadram muito bem no discurso da História e a tem como sua mais fiel aliada. É pela mesma razão [“histórica”], que muitos evangélicos também acreditam serem herdeiros da Reforma Protestante e que alguns estudiosos desse fenômeno confirmam tal tese como Clara Mafra, em Os evangélicos (2001:07), Ricardo Mariano, em Neopentecostais (1999:10), Ruben Alves, em Protestantismo e Religião (1982a) e Dogmatismo e Tolerância (1982b) entre outros, como forma de explicar suas eternas e convenientes divergências com o Catolicismo Romano e demais confissões cristãs. Sem se distanciar muito desta perspectiva acima, mas procurando propor uma distinção dentro do próprio fenômeno evangélico no que tange a tese da origem, as práticas e os pensamentos que desenvolvem, num artigo de 1992, intitulado: “Quem é evangélico no Brasil”, o professor Antônio Gouvêia Mendonça, cientista da religião da Universidade Metodista de São Paulo, UMESP, no conta que:

“Este termo surge na Inglaterra, na segunda metade do século XVIII e se referia a uma das alas da igreja anglicana inglesa influenciadas pelo movimento metodista, chamada de ‘evangélicos’, a outra tinha uma tendência católica romana. Essa ala se transformou em movimento e se espalhou pelo o resto do mundo ocidental, através das Alianças Evangélicas, principalmente por causa da franqueza do mundo protestante fragmentado diante da coesão e do avanço do catolicismo romano no século XIX e pelos efeitos do Iluminismo do século anterior. O objetivo desta Aliança era formar uma linha única para enfrentar o Catolicismo. [...] Evangélicos devem ou deveriam ser somente os adeptos dessa tradição ou corrente que se originou no século XVIII e que se espalhou através das Alianças e que se caracterizam pelo espírito conservador como ainda ocorre na Europa e nos Estados Unidos. Evangelicals significa conservador e adversário de tudo quanto cheire a liberalismo, modernismo e ecumenismo. Identifica uma ala muito forte do protestantismo atual e está presente em todas as denominações, abrangendo, às vezes, denominações inteiras. No Brasil este movimento chegou em São Paulo, em julho de 1903, com a fundação da Aliança Evangélica Brasileira, formada por pessoas de várias denominações protestantes, que fecharam um acordo em torno de pontos doutrinários comuns entre todas elas. Esta Aliança se transformou, pouco tempo depois na Confederação Evangélica do Brasil, que fracassou na tentativa de representar todos os cristãos não-católicos brasileiros. Porque, o ‘espírito evangélico’ só abrigava indivíduos e nada tinha a ver com as barreiras denominacionalistas. [...] Mas apesar de todas as diferenças entre as denominações e entre seus membros, estava consagrado o nome de evangélico para todos os cristãos não católicos no Brasil”(1992:04)”.


Partindo do pressuposto que, “a história é o falso lugar da unidade, dos acontecimentos, do tempo: esse é o lugar do texto” (Caldas, 1999:35b). O texto acima citado apenas está nos propondo uma outra leitura possível, um outro lugar textual desse grupo, uma outra explicação do que poderia ser isto que chamam de evangélico no Brasil. Ele não consegue singularizar e sua tentativa de historicização é pífia, é medíocre, como medíocres são os que não conseguem se libertar das amarras da história, ir além ou transcender a este discurso fundador. A história para tais pensadores é o chão por onde pode caminhar, analisar e explicar os seus discursos e os dos outros. Ele, como os próprios evangélicos não percebem que:
“A História jamais serviu para formar a consciência; ou mesmo como exemplo. Nada pode dizer ao presente, por sua singularidade inescapável. Sempre serviu aos poderes, às mentalidades reacionárias, às imagens fascistas de mundo. Desde o começo, a história esconde sua essência de singularidade desencadeadas, de falta de ligações em todas as instâncias, da falta de repetibilidade (mundo do objeto); e desde o começo luta para estabelecer exemplo, modelo, paradigma, lição, estrutura, ordem, existência. A História é uma mentira institucionalizada e instrumentalizada das lógicas ocidentais do objeto dirigido ao ‘mundo inteiro’” (1999:35a).

Os evangélicos, do A. G. Mendonça e da maioria dos seus colegas intelectuais, são evangelicais sob o ponto de vista da teologia e anticatólico sob o aspecto da estratégia. A sua identidade é forjada principalmente, mas não exclusivamente, a partir do contraste, da diferenciação com os católicos romanos brasileiros. O evangélico ou o crente, portanto, traz consigo um compromisso transparente de ser o oposto, a antítese do católico romano e dos outros credos religiosos, mesmo de tradição cristã perante a sociedade. “Era necessário identificar os recém-convertidos com um nome novo e esse foi ‘ crente em nosso Senhor Jesus Cristo’, ou simplesmente crente”. (1992:05) Sem o outro, isto é, os católicos romanos, os evangélicos não teriam se constituído.
Diferentes denominações religiosas cristãs utilizam a palavra evangélica como uma marca, um pré-nome ou sobre-nome. É com ela que a maioria, quase que absoluta, das Igrejas se identificam e se distinguem entre si. Até as pessoas cristãs não-católicas identificam-se assim também individualmente, do mesmo modo que suas igrejas. São os próprios evangélicos que se identificam desta forma, com este nome. É assim que são chamados e conhecidos, apesar das inúmeras diferenças existentes entre as igrejas que assim se denominam. Diferenças essas que nos faz pensar se evangélico é um nome ou um apelido. Esta é uma palavra inventada por eles e não pelos os outros [os seus adversários]. Eles é que espalharam e tornaram popular esta denominação. Os católicos que, segundo boa parte da literatura sobre os “evangélicos”, classificavam os convertidos a recém chegada religião do exterior de “protestantes”, “bode”, “bíblia”, “missa-seca” ou “crentes” e outros termos considerados pejorativos, refere-se aos membros dessa religião cristã pela mesma maneira como eles se autodenominam e costumam se identificar: de evangélicos.
Já quanto o nome “protestante”, nome puramente europeu, não vingou. Ele foi pouco utilizado e caiu logo em desuso; foram os integrantes do clero católico que tomaram emprestado este termo estrangeiro importado da Europa, foram eles que fizeram o uso dela nos primeiros tempos, quando não havia uma classificação autóctone mais apropriada na ocasião. Era necessário inicialmente identificar a religião concorrente, era preciso dar-lhes um nome, assim nasceu, passou a existir o nome “protestantes” ou “protestantismo”. Pouco tempo após, passou a ser empregado o termo “irmãos separados” e por fim evangélicos. Um novo personagem foi assim construído, uma ficcionalidade foi substituída por outra aqui no Brasil. “Evangélico” é o apelido mais freqüente, mais massificado e comum a todos os cristãos não-católicos brasileiros.

2. O evangélico da Revista Veja: uma análise.

Além da banalização do termo “evangélico” pelos próprios evangélicos no Brasil por todos os meios disponibilizados por eles, desde programas de rádio, televisão até todos os tipos de textos escritos a respeito, que circulam na sociedade através dos jornais, revistas especializadas, home pages, bate-papos eletrônicos, internet e etc. Apesar também da existência do “evangélico dos intelectuais”, presente em muitos livros publicados, não há em nenhum desses lugares ou escritos, quem saiba precisar com certeza o que seria isto: evangélico. Diante também do fato da existência inúmeras igrejas com esta denominação e práticas diferentes, muitas até antagônicas entre si, que confunde qualquer pessoa, fica difícil saber se estamos lidando com um substantivo ou com um adjetivo, com uma singularidade ou uma pluralidade, com “ovinos” ou “ovíparos”, com extraterrestres ou seres celestiais. Tratar a palavra evangélica, esta amálgama ilusória, esta abstração genérica, como se fosse um termo consensual e preciso é naturalizar uma construção social, é classificar o inclassificável, é tentar dar uma ordem ao caos. Um dos autores aqui citado, o Antônio Gouvêia Mendonça expressa muito bem essa dificuldade:
“No Brasil, o movimento evangélico entrou e ficou para fazer confusão. O Brasil, mais do que qualquer outro país da América Latina tem sido o destino de todos os sistemas de idéias religiosas alinhavadas noutro lugar. Aqui, descosturam-se, misturam-se e dão origem a esse caos protestante que dificulta, para não dizer impossibilita, qualquer tentativa de identificação ou classificação”. (1992:04)

É por tudo isso que “evangélico” é algo inexistente em si mesmo; só existe quando é nomeado, escrito ou falado, conforme afirmava Derrida: “É, portanto simultaneamente verdade que as coisas chegam à existência e perdem a existência ao serem nomeadas. [...] Aliás, não basta ser escrito, é preciso escrever para ter um nome. É preciso chamar-se” (2002:62). É assim que o evangélico passa a existir ou deixa de existir. Este, como qualquer outro nome, é constituído com os outros, em dialogo, como também os seus inúmeros significados e sentidos. Nesse diálogo podemos confirmar ou contestar o que se é dito e os “não ditos” e fazer fluir o que a escritura faz existir. É nessa perspectiva que agora farei uma leitura de algumas citações ordenadas numericamente, extraídas da reportagem da supracitada Revista.
Eis então as citações com as minhas respectivas leituras:

1- “O país mais católico do mundo está ficando cada vez mais evangélico”.[p.89]
– Nem todos que se tornam evangélicos, necessariamente, vem do Catolicismo Romano. Converte-se nas igrejas denominadas evangélicas, pessoas das mais diversas origens sociais, religiosas, políticas e econômicas. Não há distinção de pessoas que entram e que sai, embora, o processo de conversão ocorra de forma diferente para cada um deles. O proselitismo evangélico não seduz a todos, há quem não seja persuadido de nenhuma forma pela propaganda evangélica. Por isso, ser evangélico, simplesmente, não significa ter sido antes um não católico.
- Ficar cada vez mais evangélico não significa absolutamente ficar menos católico, pode-se ser tão católico quanto evangélico, afinal, ambas as religiões são cristãs. Afinal, a catolicidade não pretensão de uma única igreja ou denominação eclesiástica, mas de todas elas. É vocação do cristianismo querer ser universal, querer que só exista um só homem, uma Humanidade, um planeta, um só Deus, uma só Terra para todos e um só Céu e Inferno. O que varia, não é para mudar, mas para dizer o mesmo, fazer o mesmo.
- Não há nenhuma diferença essencial entre um evangélico e um católico romano, só formal: o mito fundador, Jesus Cristo, é o mesmo, bem como também a sua Escritura, a Bíblia. Ver diferenças na essência de ambas manifestações religiosa é justificar a necessidade da existência dessas instituições e a continuidade do poder nelas existentes; é ajudar a muita gente a continuar: trabalhando de graça nessas Igrejas [os leigos ou “o rebanho”], a viver as custas da exploração alheia [a classe dirigente sacerdotal, o clero, os pastores, missionários e etc...] e ajudar o Estado na reprodução das relações de poder e de classe na sociedade.

2- “O resultado do censo demográfico no quesito religião,..., mostra que mais de 15% dos brasileiros – um rebanho de 26 milhões de pessoas – são protestantes”. [p.89]
– Apesar do protestante ser confundido com o evangélico nesta reportagem, não podemos deixar de observar a mistura que é feita nessa hora. Esta ambigüidade que é a palavra evangélica, relativiza as conclusões do IBGE. A Revista Veja nos induz a entender: que ambos os termos são sinônimos, quando não é nada disso segundo outros pontos de vista. - O termo protestantismo caiu em desuso. Só é usado pelos pesquisadores do IBGE, que só vêem diferenças, fissuras entre protestantes e católicos e não dentro do próprio catolicismo e protestantismo. Não obstante, há quem veja nesses dois termos uma profunda diferença conceitual e histórica, como se o termo em voga hoje fosse resultado de uma evolução do termo anteriormente usado, mas também uma evolução cosmológica e, por conseguinte, teológica. A doutrina evangélica, por exemplo, da conversão difere das doutrinas dos reformadores europeus e norte-americanos. Clara Mafra, em seu livro: Os evangélicos chegam a dizer que: “a lógica, a conversionista dos protestantes que aqui chegaram ao Brasil sofreu suas transformações” (2001:18).

3- “As conseqüências desse crescimento são muitas. Esse fenômeno pode levar a alterar o perfil das famílias brasileiras”. [p.89]
– Seria o perfil das famílias constituídas por evangélicos diferentes daquelas formadas por não evangélicos? Que perfil seria este tão incomum, tão diferente das demais família brasileira? Será que seria um perfil qualitativamente melhor ou pior? São diferentes em que? Ou, o crescimento numérico, por si só, é um fenômeno qualitativo? O Brasil ficou melhor? Robinson Cavalcanti, bispo anglicano do Recife, quando reflete acerca do exercício da cidadania por parte dos cristãos no Brasil chega a afirmar que: “... o aumento do número dos cristãos não tem diminuído o número dos nossos problemas” (2000:60).

4- “Os evangélicos, mesmo entre os menos escolarizados, têm menor número de filhos que seus vizinhos de outras religiões”.[p.89]
– Dados do próprio IBGE diz que o Brasil está se tornando um país com uma população cada vez mais de idosos, como ocorre na Europa e que “ter menos filhos” é hoje uma característica de toda a população brasileira e não apenas dos que são evangélicos, portanto, não é isso ainda que diferencia este segmento religioso dos demais.

5- “Três quartos das mulheres evangélicas casadas usam contraceptivos”.[p.89]
–desde quando o uso de contraceptivo é uma conseqüência da opção religiosa de uma pessoa? Não seria o caso de pensarmos que isto é fruto de uma melhora das propagandas educacionais veiculada pela televisão, rádio ou jornais e da crescente escolarização por parte da população brasileira nestes últimos tempos? O uso de contraceptivos industrializados é algo recente em nossa sociedade e ainda há muitas pessoas que resistem ao seu uso, justamente por motivos religiosos, por acreditarem na doutrina que diz, que o ato sexual deve ser praticado, exclusivamente, para a procriação. Além do mais, a história registra o uso de contraceptivos naturais pelas mulheres que não queriam ou não podiam ter filhos, antes, durante e depois do advento da pílula anticoncepcional, independente da filiação religiosa que ela esteja. Há, mulheres evangélicas não casadas também usam contraceptivos. A reportagem ainda conserva a visão estilizada que os próprios evangélicos tem de se mesmo [a do purismo sexual].

6- “Quase 90% dos adeptos de igrejas evangélicas acreditam que a moral sexual do homem e da mulher deve ser igual, e 65% deles preferem casar-se com algum irmão de fé”.[p.89]
– Essa precisão métrica, percentual é bastante duvidosa. Ela parte do pressuposto de que há uma moral sexual que possa ser medida e que todos têm a mesma compreensão dela? Esquece-se que aquilo que chamam de moral sexual, não passa de uma invenção da própria Igreja como forma de estabelecer uma diferença com os que são de fora do grupo. A sociologia explica bem isso; segundo ela, é um elemento de coesão social.

7- “Ao contrário do que acontece com os católicos brasileiros, cuja maior parte nasce dentro da religião, mas na maioria dos casos não a segue completamente, os evangélicos levam a prática da fé a sério”. [p.89]
– Há esse entendimento de que quem é católico nasceu católico e que os evangélicos não. E o que dizer dos países de maioria protestante como os EUA? Seriam as pessoas protestantes porque nasceram protestantes? Não obstante, ser católico ou de qualquer outra religião é algo genético ou social? Tanto um como os outros são formatações de uma dada sociedade. E em todos os grupos religiosos há quem leve a sério e quem não leve a sério a prática de sua fé, porém o que poderia significar isso? O que seria levar a sério a prática de uma fé? Como medir isso também? Vai depender do entendimento que se der a isso.

8- “O evangélico é aquele que é convertido”.
– Por quem? Como? Há uma forma especifica disso acontecer? O que seria isto? Ser convertido é ser militante da causa, é ser envolvido com os cultos e as atividades comunitárias desenvolvidas em torno dos templos que freqüentam? Ora, se é assim, podemos encontrar engajados em todas as religiões e isto ainda não difere o evangélico de um não evangélico. A reportagem, aliás, associa conversão a adesão, quando diz que O evangélico é aquele que escolheu aderir a uma religião por conta própria divergindo assim da compreensão que os evangélicos tem desse assunto. Para eles, conversão é um fenômeno sobrenatural, onde o homem não tem nenhuma participação a não ser se render a ele.

9- “80% dos evangélicos dizem participar das cerimônias e das obras sociais com regularidade – uma porcentagem maior que no rebanho católico”.[p.89]
– O ato de dizer que faz mais é evidência verdadeira de que faz isso mesmo? Ser evangélico, portanto, é fazer mais ou agir mais que os católicos?

10- “As religiões cristãs não-católicas, como as evangélicas, têm sua origem no começo do século XVI, quando um monge alemão chamado Martinho Lutero se insurgiu contra Roma. No ano 1517, revoltado com a venda de indulgências pelo papa, Lutero escreveu suas famosas 95 teses, que pregou na porta da catedral de Wittenberg”.[p.90]
–Neste caso, ser evangélico significa ser apenas “um cristão não católico dentre muitos”; “uma variação de cristão não católico”. Mas, é bom aqui salientar que, historicamente falando, antes mesmo do advento da chamada Reforma Protestante existiam e existiram grupos cristãos não-católicos, considerados heréticos, parias e que experimentaram o anátema por parte da igreja hegemônica. Neste caso, a reportagem, ao localizar todas as religiões não-catolicas no século XVI, leva-nos a crer que antes deste período só havia uma religião cristã: o catolicismo romano e que o resto é pura e simplesmente uma dissidência. Logo, o evangélico é, a priori, um dissidente. Ora, até que ponto se pode incluir os evangélicos nesta categoria? Ao dialogar com uma certa história e estabelecer um ponto de partida, uma origem para os evangélicos, a reportagem cria uma tradição que não existe em si mesma, e inventa um certo passado para que se possa identificar essa comunidade religiosa. É a partir deste diálogo que se forja uma identidade para os evangélicos. Como este diálogo é dinâmico, outras definições do que venha a ser os evangélicos poderão vir à tona. O diálogo aqui, nesta reportagem, se trava com as vozes que vem de fora, dos grupos não evangélicos. São as vozes do outro, inventando um certo grupo social. O termo “evangélico”, antes de ser usado por inúmeras igrejas cristãs, é uma adjetivação vinda de fora, das outras religiões. Este mesmo processo ocorreu com o termo cristãos e protestantes que nasceram fora do cristianismo e do protestantismo. [Isto confirma o que Bakhtin disse:.. ]
11- “Com o tempo, do tronco protestante antipapal foram brotando dezenas de denominações. A mais importante dessas subdivisões, a do pentecostalismo, criada pelo pregador negro americano Willian Joseph Seymour, foi uma explosão de fé”. [p.90]

- Mais uma vez a reportagem identifica o evangélico com o protestante e este por sua vez, como um antipapal. O pentecostal aqui seria apenas uma variação. Ser evangélico, portanto, seria ser anticatólico. O anticatolicismo seria uma característica definidora. Seria tal coisa parte dos seus discursos ou este seria um discurso dos outros, dos que não são? Quem será o produtor dele nesta reportagem? Para quem ele discursa? Os públicos alvos não são os próprios “evangélicos”, mas que não são.

12- “Ao proliferarem em todas as camadas sociais, os evangélicos estão produzindo mudanças facilmente detectáveis. A mais visível dela acontece em público. Neste ano, o mais retumbante evento da Semana Santa, o Sermão da Montanha, aconteceu numa praça de nome católico, a Praça do Papa, em Belo Horizonte, mas foi liderado por evangélicos. Cerca de 100 000 protestantes de ramos diversos ali apresentaram ao Brasil um refrão que sinaliza os novos tempos:’Um, dois, três, quatro, cinco, mil, queremos um evangélico presidente do Brasil’. Circunstancialmente, foi o presbiteriano Antony Garotinho, de 42 anos, quem se apresentou como candidato a esses votos”. [p.92]

- Neste enunciado, o “evangélico” é aquele que provoca mudanças na sociedade porque ele também faz parte das suas diversas elites, desde a política a elite cultural e esportiva. Em todos os segmentos, ou quase todos, há evangélicos. Mas, não é necessariamente o número de adeptos que lhes dá visibilidade, mas a classe social de onde muito deles fazem parte. O evangélico

pode ser qualquer um da sociedade. [Mas qualquer um pode ser evangélico?] No mesmo enunciado, a reportagem diz que, mesmo sendo anticatólicos, os evangélicos usam espaços “católicos” e fazem coisas que eles fazem, inclusive: lançar candidato a um cargo político. Então, o que os distingue nesta hora? O discurso, a prática, ou ambos? Ou nenhum e nenhuma das duas coisas? Sendo o enunciado tendo como destinatário um público de maioria católica, é possível fazer esta última leitura, a de que “evangélico” e católicos, na prática, não são tão diferentes assim. Embora esta leitura contradiga afirmações anteriores.

13- “Em todas as variantes do protestantismo, é missão do fiel e de seu pastor espalhar a palavra do Senhor. Em resumo, ele deve converter seu semelhante. Na maioria dos casos, quanto pior o currículo ético desse semelhante, maior será o esforço para salva-lo”. [p.92]

- O evangélico é alguém com uma missão. Ele existe para realizar algo. Este algo é se reproduzir. Isto implica em provocar a adesão de outras pessoas para sua fé. Ele é um propagandista; um cruzado em missão. Dentro da lógica do capital, ele é aquele que sai no mundo atrás de quem possa comprar o seu produto e consumir o que ele consome. É o seu “destino manifesto” fazer prosélitos. Como uma boa ovelha, tem que se reproduzir para que possa aumentar o rebanho e muitas ovelhas sejam tosquiadas e muita lã seja produzida. Mas, a melhor coisa que pode acontecer é quando um lobo é amansado ou transformado em ovelha. A isto eles chamam de conversão, ou seja, processo de dosmeticação e transformação de lobos em ovelhas. Quanto mais lobo for melhor, para ser convertido. Rubem Alves resume muito bem o motivo dessa mutação em seu livro Dogmatismo e Tolerância (1982:109): “... à primeira vista, a moral desviante possa parecer o comportamento mais perigoso para a unidade da sociedade, a verdade é que o pensamento divergente é aquele que apresenta maior periculosidade abalando a ordem social em questão nos seus próprios fundamentos. O ladrão, que atenta concretamente contra a propriedade privada, é menos perigoso que aquele que, não sendo ladrão, contesta, ao nível intelectual, a legitimidade da propriedade privada. O primeiro deseja apenas resolver um problema prático particular. O segundo nega a validez da ordem social como um todo. [...] A prostituta, igualmente, é menos perigosa que o eunuco que afirma uma filosofia de amor livre”. Sendo assim, portanto, conversão é domesticação, “pacificação”, é estranhamento e diferenciação com o outro e o mundo dele. O evangélico é aquele que se aliena dos outros e da sociedade; uma espécie de autista religioso, um asceta.


14- “A simplicidade facilita a evangelização”. [p.92]

- O evangélico é uma espécie de católico simplificado, segundo a reportagem. Ele é alguém dês-burocratizado e é o seu próprio despachante junto a Deus. É alguém que, “aqui na terra” não precisa de mediações para “ser salvo” e realizar a sua missão, é uma espécie de “self-made man” religioso, isto é, “homens religiosos que se fizeram por si mesmos”. É alguém que não precisa marcar audiência para poder falar diretamente com Deus. Em outras palavras podemos sintetizar: os valores abraçados pelos evangélicos são caricaturas religiosas dos valores do homem moderno e uma simplificação do modo de ser católico.

15- “Numa troca simples, a igreja evangélica propõe que sua ovelha se afaste do mal e siga um código duro de conduta, oferecendo em troca apoio e reconhecimento por seu sucesso na empreitada”. [p.92-93]

- Ser evangélico, segundo indica a reportagem, é, contraditoriamente, alguém subserviente. Ao abraçar este código de conduta estará abrindo mão da sua liberdade de pensamento e de ação. Ele é alguém da igreja agora e não pode pensar e agir sem ela, sozinho. A sua linguagem é a linguagem dele. Ele tem que se submeter a uma “ordem do discurso” religioso compactuado por todos no grupo para que nele possa ser aceito.


16- “Esse entusiasmo gera dinheiro, na forma de dízimo, e esse dinheiro, ao se transferir para a mão de pastores que vêem a religião como um negócio, tem gerado tanto o crescimento de muitas denominações quanto maracutaias, denúncias e investigações”.[p.93]


17- “A Igreja renascer em cristo enfrenta mais de cinqüenta processos movido por ex-fiéis”.[p.93]


18- “Como em todos os grupos humanos, há pecadores também entre os evangélicos. Mas a grande maioria deles é constituída de pessoas não apenas honestas, mas honesta acima da média”.[p.93]



19- “essas igrejas oferecem espaço a quem quer rezar num templo sem ouvir condenações sumárias ao capitalismo, como ocorre em certas paróquias católicas”. [p.94]



20- “Somando tudo - de CDs a bares e instituições de ensino -, o mercado impulsionado pelos protestantes movimenta 3 bilhões de reais por ano e gera pelo menos 2 milhões de empregos”. [p.94]

21- “Na política, os evangélicos são um trator”. [p.95]




22- “Se o terreno para as conquistas é o Parlamento, nada mais natural para os evangélicos do que ir até lá pegar seu quinhão”.[p.95]

23- “Há também grande investimento em educação. A maioria dos evangélicos brasileiros gira em torno de seis livros por ano – o dobro da média nacional”. [p.95]

24- “Paradoxalmente, o que mais mudou no Brasil com o crescimento da legião evangélica foi a Igreja Católica”. [P.95]


BIBLIOGRAFIA:


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CALDAS, Alberto Lins. ORALIDADE TEXTO E HISTORIA: PARA LER A HISTÓRIA ORAL. Edições Loyola, São Paulo, 1999a e b.

CAVALCANTI, Robinson. A IGREJA, O PAÍS E O MUNDO: DESAFIOS A UMA FÉ ENGAJADA. Ultimato, Viçosa, 2000.

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MENDONÇA, Antônio Gouvêa. QUEM É EVANGÉLICO NO BRASIL? Debate, suplemento do Jornal Contexto Pastoral, nº8, maio/junho de 1992. Publicação do Centro Evangélico Brasileiro de Estudos Pastorais - Cebep. Campinas, São Paulo.

PEREIRA, José dos Reis. BREVE HISTÓRIA DOS BATISTAS. 3ª edição. Junta de Educação Religiosa e Publicações, Rio de Janeiro, 1987.


Os evangélicos são proselitista, eles disputam ardorosamente as ovelhas dos seus rivais, sejam estes da Igreja Católica, de religiões não cristãs e até das próprias Igrejas evangélicas.

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